domingo, 16 de setembro de 2007

O 'guard-rail'

"O senhor gostaria do quê?!"

"Eu gostaria de pagar o estrago que causei no guard-rail da estrada."

"Pagar o estrago? O senhor teve um acidente na estrada..."

"...e o guard-rail ficou todo retorcido."

"Ah, sim,... e quando foi isso?"

"Ontem à noite, por que?"

"Mas por que o senhor quer pagar?"

"Ora, porque eu danifiquei propriedade pública e quero pagar pelo que fiz."

"Mas aquelas coisas estão lá para serem danificadas mesmo, sempre que houver um acidente..."


"Sim, e elas me salvaram a vida ontem. Se não fosse pelos guard-rails eu teria voado para fora da pista e hoje estaria num hospital ou talvez morto."


"Sim, sim... Que sorte a sua! Quer dizer, que azar ter batido, mas tem sorte de estar inteiro."



"Não! Não foi azar eu ter batido. Foi imprudência mesmo! A pista estava molhada e eu não diminuí a velocidade na curva. E também não foi sorte eu ter saído ileso. Foram os guard-rails."



"Chamou a polícia?"



"Não... estava chovendo e meu carro voltou para a pista depois da batida. Na verdade, eu nem cheguei a parar."



"E como sabe que causou tanto estrago no guard-rail?"



"Passei lá hoje. Está todo retorcido."


"Mas como sabe que foi o senhor que o danificou?"

"Se ele já estivesse retorcido ontem, do jeito que está hoje, não teria me segurado."

"Mas o senhor nem parou... sua batida parece ter sido leve. Se o guardrail está destruído, provavelmente também foi abalroado por um caminhão depois do senhor."

"Como assim? E daí?"

"E daí? Daí que talvez o senhor não seja único o culpado!"

"Não estou entendendo. Por que você está tentando me convencer de que não devo pagar pelo estrago?"

"Bem, o fato é que nem sei como cobrar isso do senhor. Não temos como receber seu pagamento."

"Não têm como receber? Estranho. Sabe, eu já tive que pagar uma multa por andar um quilômetro, um quilômetro!, acima da velocidade máxima. Naquele dia, não causei mal a ninguém, nâo danifiquei a propriedade de ninguém, mas fui punido com uma multa. Em compensação, agora que me declaro culpado e quero reparar o mal que fiz, vocês não têm como receber. Não lhe parece que tem alguma coisa errada nisso?"

"Olha, meu amigo, eu não sei explicar por que as coisas são assim. Meu trabalho é atender as pessoas neste guichê. O que posso lhe dizer é que o senhor e todos nós já pagamos pela manutenção do guard-rail. É para isso que existem as taxas e os impostos."

"Então o guardrail já está sendo consertado?"

"Ah, não... quer dizer... eu não tenho essa informação, senhor."

"Ah, você sabe tanto quanto eu que o guard-rail ainda não foi, não está sendo, nem será consertado tão cedo."

"É mesmo improvável que já esteja sendo consertado, assim no dia seguinte. É normal que leve alguns dias..."

"Não, é normal que leve alguns meses, talvez mais que um ano."

"..."

"Mas pode haver outro acidente ainda hoje naquele local. A curva é perigosa. Muito perigosa quando chove! E essa chuva parece que vai continuar por vários dias. Alguém pode cometer o mesmo erro que eu ainda hoje."

"Meu senhor, acidentes como o seu acontecem às dúzias todos os dias. É impossível reparar todos os danos no dia seguinte!"

"Mas eu estou aqui disposto a pagar pela manutenção. Imediatamente. Não dá para pegar o dinheiro e contratar uma empresa para fazer o serviço?"

"Desculpe, senhor, mas não é assim que as coisas funcionam."

"Você poderia assinar uma declaração de que eu estive aqui, disposto a pagar pelo prejuízo que causei e que vocês não têm como receber meu pagamento e muito menos providenciar o reparo imediato do guard-rail?"

"Talvez o senhor deva falar com o meu gerente."

"Sabe, se alguém se acidentar hoje, lá, naquela mesma curva, eu não quero me sentir culpado por ter destruído a proteção que poderia salvar uma vida."

"Ora, o senhor está criando um drama com isso! É uma questão corriqueira! Ninguém vai acusá-lo, porque não é sua a responsabilidade de fazer a manutenção das estradas."

"E de quem é?"

"Ah... aha, já entendi! Hahaha!! É uma pegadinha, né? Onde está câmera? Com você aí atrás? Não?... Não é uma armação?... O senhor quer falar com meu gerente?"

...

"Então é o senhor quer pagar os estragos do guard-rail?"

"Sim, sou eu. O atendente do balcão me disse que não tem como receber esse pagamento, "

"O atendente me explicou seu caso, que é bastante raro, como pode imaginar. Acho que nenhum de nossos atendentes já encarou uma situação dessas, mas, sim, é claro que é possível receber seu pagamento."

"Ah, ótimo!"

"O senhor tem idéia de quantos metros de quard-rail foram danificados?"

"Ahn... não sei ao certo... uns dez metros, talvez..."

"Tenho aqui uma tabela de custos. Vou emitir uma guia de pagamento com o custo de dez metros... deixe-me ver... cada metro a mil e..."

"Como assim? Mais de mil cada metro?!"

"...são dezoito mil e quinhentos."

"Tá brincando? Meu carro não vale isso! São de ouro esses guard-rails?"

"Esse é o preço que pagaremos pelo conserto dos dez metros de proteção de pista que o senhor danificou."

"Deve ter algum engano!"

"Olhe o senhor mesmo aqui na tela. Foi este tipo de proteção a danificada?"

"Sim, sim... não me refiro ao tipo de guard-rail. Deve haver algum engano no valor!"

"Não, é isso mesmo. Veja, é o preço já instalado, claro, com garantia de cinco anos, exceto no caso de ser destruído num acidente como o seu. O senhor quer pagar à vista ou quer parcelar. Posso parcelar em até..."

"Espere aí! Esse valor é totalmente irreal!"

"Ah, não. Bem, eu concordo que é um tanto caro, mas posso lhe garantir que é bem real. Os serviços sempre são mais caros quando o cliente é o governo."

"Eu me recuso a pagar esse valor absurdo!"

"Desculpe-me, senhor, mas agora não tenho mais alternativa. Tenho que cobrar pelo estrago que o senhor mesmo admitiu ter causado."

"Sim, mas não pode me cobrar esse valor tão alto!"

"Não posso cobrar outro valor, senhor. Não me cabe decidir o valor, apenas cobrá-lo.”

“Eu quero falar com o seu superior!”

...

“Boa tarde!”

“Amigo, faz algumas horas que estou sendo atendido por diversas pessoas. Estou cansado e arrependido de ter tentado agir conforme mandava a minha consciência.”

“Eu já fui informado do seu caso.”

“Bom, acho que todo mundo aqui já está sabendo. Só não achei quem resolva o problema.”

“Pois bem, vamos resolver. O senhor deve aos cofres públicos dezoito mil...”

“Ora, por favor, por favor! Isso é ridículo!”

“Seu prontuário eletrônico está na minha tela. O senhor quer ver?”

“Já me mostraram essa tela várias vezes...”

“Eu insisto que veja esta tela! O meu cargo dá acesso a informações e comandos que não podem ser vistos por meus subalternos. O senhor vai achar interessante.”

“Você pode... apagar o prontuário...”

“Vou fazer isso e vamos esquecer que você esteve aqui.”

“Ah, que bom! Eu lhe agradeço...”

“É um procedimento arriscado para mim, posso ser questionado depois.”

“Entendo... quer dizer, não entendo... por que vai fazer isso, então?”

“Por que quero ajudar o senhor a sair dessa...”

“Você quer me ajudar... puxa, obrigado! Não sei como lhe agradecer...”

“O senhor pode retribuir a minha ajuda me ajudando também... Veja bem: estou ajudando o senhor a sair de uma bela enrascada. Uau, dezoito mil e quinhentos! Quanto o senhor acha que vale a minha ajuda? Com quanto o senhor pode me ajudar também? Quanto, assim, de coração?”

Geraldo Boz Junior
Curitiba, agosto de 2007

Imagem: http://tti.tamu.edu

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