domingo, 16 de setembro de 2007

Escola


Os passinhos de Layla acompanhavam apressados os largos passos de sua mãe pelo corredor da escola, enquanto ela apalpava com o olhar cada detalhe daquele ambiente que lhe era totalmente estranho. Agarrada ao Jorjão, um urso branco de pelúcia quase tão alto quanto ela, andava sem perder a pista da mãe, que também seguia analisando a escola com um ar meio surpreso, meio confiante.

"Luísa Pontos... o seu nome não me é estranho". A secretária, uma senhora já quase sexagenária parou de digitar e olhou para a mãe de Layla.

"Eu estudei aqui, mas já faz quase vinte anos."

"Eu nunca esqueço um nome..." fez uma longa pausa "mas nunca lembro de onde... Data de nascimento?"

Continuaram preenchendo a ficha de matrícula da menina, enquanto o Jorjão, sentado num canto da sala, aprendia sobre cores e sabores com a professorinha Layla.

"Escola Pública Comunitária?" Perguntou ela, já com a ficha impressa na mão. "Não é mais Escola Estadual?"

"Não existem mais escolas estaduais nem municipais em Curitiba, mãe."

Luiza não lembrava mais daquele costume de se chamar as mães de mãe. Era estranho que aquela senhora, que tinha idade para ser sua mãe, a chamasse de mãe.

"Mudaram o nome de novo? Já foi Colégio, Grupo Escolar, depois Escola Municipal e agora essa... como é mesmo?"

"As aulas de história que você teve aqui foram bem dadas, ao que parece. Você não esqueceu os nomes."

"Layla, pare de pintar o Jorjão, filha!"

"Ah, essas tintas são laváveis..." a senhora se interrompeu ao perceber que mãe e filha olhavam para ela, mas depois completou a frase: "... e não são tóxicas!" Então sorriu de um jeito atravessado, como que pedindo desculpas pela intromissão.

"Eu não lembro de você..." Luísa conferiu o crachá da secretária "Marlene... Não trabalhava aqui na minha época, trabalhava?"

"Não, eu fui contratada depois da desestatização."

Layla voltou para perto da mãe, trazendo o agora urso branco de cabelos verdes.

"Agora vamos embora?"

"Quer outra folha para pintar, Layla?"

A menina, encabulada pela secretária, puxou a mãe e cochichou-lhe algo. Luiza sorriu e lhe respondeu com outro cochicho ao pé do ouvido. Depois pigarreou e falou à secretária, como se estivesse simplesmente continuando a conversa anterior:

"Nós... ahn... gostaríamos de conhecer o parquinho da escola. Tem um parquinho para os pequenos, não?"

"Ah, claro, eu já terminei a ficha de matrícula e, como não tem mais ninguém para atender, posso levá-las até lá. Tenho certeza que Layla vai aprovar. É um parque muito moderno."

As três saíram da secretaria em direção ao pátio. No caminho, pensando sobre o "parque muito moderno", Luiza começou a reparar que a escola estava muito diferente de quando ela estudara lá: não tinha paredes pichadas, nem vidros ou carteiras quebrados, nem tacos soltos no chão...

"A escola está muito bonita e bem cuidada."

"É, ao poucos está entrando nos eixos. Quando assumimos, há cinco anos, isso aqui parecia um prisão logo após uma rebelião. Aliás, parecia um presídio em plena rebelião... Ainda tem muita coisa para fazer, mas já está bem melhor."

"Não tinha pré-escola aqui, no meu tempo. Só tinha a partir da quinta série."

"As coisas mudaram muito nesses últimos cinco anos. É a própria escola que define quais as séries que vai ter. A direção da Cooperativa decidiu abrir turmas de pré-escola no ano passado. Acho que este ano..."

"Cooperativa?"

Marlene, interrompida por Luísa, olhou para a mãe surpresa, com as sobrancelhas erguidas, mas em seguida olhou para frente, sorriu e apontou para o parquinho infantil a que haviam chegado. Layla imediatamente se desgarrou da mãe e correu para os brinquedos. Não era o parquinho que Luísa esperava. De fato, estava mais para o ‘parque muito moderno’ anunciado por Marlene. Luísa ficou encantada com as cores, com os brinquedos acolchoados, alguns tradicionais, outros com formas e funções que ela nunca tinha visto.

"A Cooperativa é a administradora da escola, mãe. Desde a desestatização, esta escola é gerida por uma cooperativa dos profissionais que aqui trabalham. Nessa escola não temos mais nenhum funcionário. Somos todos sócios da cooperativa."

"Sócios?" Luísa estava confusa. "Mas eu achava que ainda era uma escola pública. Eu não posso pagar a mensalidade daqui..."

"Você não vai pagar nada. Aqui não cobramos nada além do cheque-educação."

"Cheque-educação..." Luísa não perguntou, mas era evidente que não sabia do que Marlene estava falando. Pacientemente, Marlene continuou:

"Com a matrícula que fizemos, a escola inscreve Layla no Fundo da Educação, que paga a mensalidade da menina. Você não vai pagar nada."

"Humm... que bom que esta escola é mantida por esse fundo. Que sorte ser bem essa aqui perto de casa!"

"Não, acho que você não entendeu. Não é só esta escola que é mantida pelo Fundo. Todas as crianças em idade escolar recebem o cheque-educação do Fundo da Educação. Todas as escolas recebem esse cheque como pagamento, ou parte dele."

"Ah, então funciona igual ao cheque-saúde?"

Marlene meneou a cabeça, misturando um sim e um não, enquanto pensava na comparação proposta por Luísa.

"Sim... o princípio realmente é o mesmo, mas os detalhes são muito diferentes. Você não tem acompanhado as mudanças políticas dos últimos anos, não é?"

"Ah não, eu detesto política!"

"Então somos duas!" Elas riram. "Mas eu detestava ainda mais", continuou Marlene, "quando a política se misturava com a educação. Hoje nossa escola é como uma escola privada."

"Com esse cheque-educação eu poderia colocar a Layla num colégio particular?"

"Humm, poderia, mas lá a mensalidade é maior que o valor do cheque. Você teria que pagar a diferença."

"Ah, então as coisas não mudaram tanto! É a mesma coisa que nos tais Planos de Saúde Públicos. A gente pode escolher qualquer um, mas o cheque-saúde só cobre os mais básicos."

Houve um silêncio prolongado entre as duas. Layla continuava incansável, subindo e descendo nos brinquedos.

"Eu acho que as coisas mudaram sim, mãe. Mudaram e mudaram muito. Basta você olhar para esta escola. Agora estamos em férias. Você precisa vir aqui quando estivermos em aulas. Precisa ver nossa forma de trabalhar, nossas salas ambiente, nossas turmas com idades variadas e sem horários fixos, nossos projetos em andamento. Você já parece estar bastante impressionada com a melhoria na aparência física da escola, mas ainda não viu nada. Não viu a mudança principal. Você precisa ver os nossos alunos trabalhando."

"Trabalhando?"

"Modo de falar, em parte, mas o que eles fazem aqui não se parece muito com o que você e eu fazíamos quando estávamos na escola. Eles trabalham mesmo, para aprender o que lhes interessa. Formam equipes, pesquisam, constroem, competem, divulgam, fazem e acontecem. O dia-a-dia aqui é bem agitado."

Luísa ficou balançando a cabeça em aprovação ao que ouvira.

"Estou tentando imaginar como é isso", disse ela, depois de uma longa pausa.

"Pois então venha nos visitar daqui uma semana, num dia de semana, se conseguir uma folga no trabalho."

"Estou sem trabalho, no momento..."

"É mesmo? Estamos com vagas abertas aqui na escola. Quem sabe você não se associa!"

"Eu adoraria!"

"Pois vamos falar com a diretora! Acho que ela está na biblioteca."

A biblioteca foi outra surpresa para Luísa. No seu tempo, o que se chamava de biblioteca era apenas um pequeno depósito de livros velhos. Mesmo assim, tinha boas lembranças dos muitos livros que lera naquela época. Depois que saiu da escola, a vida não lhe dera muito tempo, nem disposição para ler. Trocara seus romances por notas fiscais e livros-caixa havia tanto tempo que mal se lembrava do prazer da leitura. A nova biblioteca da escola era encantadora. Uma sala ampla, agradável, com muitas prateleiras de livros, computadores e mesas de leitura.

Luísa foi apresentada à diretora, primeiro como mãe, depois como candidata a trabalhar na escola e a conversa se transformou numa entrevista de emprego. Enquanto isso, Marlene mantinha Layla (e Jorjão) distraídos com livros infantis que tirou de uma prateleira. Depois de algum tempo, a diretora deu seu veredito:

"Traga seus documentos amanhã e vamos começar um período de experiência."

Luísa ficou olhando para a diretora, perplexa.

"O que foi? Algum problema?"

"Não... sim... na verdade, sim... eu posso ser franca? É que, bem, eu estava imaginando que ia passar por um teste, um concurso..."

A diretora riu amigavelmente.

"Não fazemos mais concursos. Na verdade, você não vai ser empregada da escola, mas sócia da nossa cooperativa. Mas acho que entendi sua preocupação: as coisas aconteceram rápido demais e pode estar lhe parecendo que tem algo errado nesse serviço, que foi fácil demais consegui-lo."

Luíza confirmou apenas balançando a cabeça, um tanto insegura.

"Pois então preciso lhe dizer uma coisa, alias duas:", continuou a diretora. "Apesar de não termos concursos e de você ter sido admitida dessa forma descomplicada, prepare-se para o trabalho duro, menina. Tem muita coisa aqui para você aprender e tem muito trabalho pela frente. Você só vai conseguir se manter aqui se se dedicar bastante."

Luísa esboçou um sorriso meio sem graça e ia falar, mas a diretora continuou:

"A segunda coisa que preciso lhe dizer é que entrevistei várias pessoas antes de você e ainda não havia achado alguém com o seu perfil. Você não foi uma escolha de emergência, não foi a única que conseguimos. Resumindo, quero que não subestime esse trabalho só porque não houve um concurso, ou porque ele praticamente lhe caiu no colo quando veio matricular sua filha, mas também quero que não subestime a si mesma, porque você tem seus méritos e não foi escolhida à toa, está certo?" O tom da diretora era claramente amigável. Luísa sorriu e se mostrou mais confiante. Estendeu a mão para cumprimentar a diretora e se despedir.

“Obrigada! Estou feliz e espero corresponder ao que esperam de mim.”

“Ah, não agradeça. Tenho certeza que vai corresponder e espero que continue feliz. Estamos todos aqui para sermos felizes!”

Luísa foi buscar Layla, que ainda estava com Marlene folheando livros cheios de imagens coloridas. Pensava na sorte que tivera. Estava empregada!

“Já sei de onde conheço seu nome, Luíza,” disse Marlene. Foi até a mesa da bibliotecária e acessou o computador. A diretora ficou observando, atenta.

“Luíza Pontos,” anunciou Marlene, “não devolveu o livro ‘Contabilidade Básica’ que emprestou da nossa biblioteca, quando ainda estudava aqui.” O queixo de Luiza caiu. As sobrancelhas da diretora se ergueram. Jorjão se agarrou em Layla. Marlene continuou: “São dezessete anos de multa pelo atraso na devolução.” Ela e a diretora se entreolharam, zombeteiras. “Nada que um ano de trabalho voluntário não pague.”

Geraldo Boz Junior
Curitiba e São Luís do Purunã, agosto de 2007.

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